“Casa-grande e senzala” completa 80 anos com o mesmo vigor polêmico de quando foi lançado
A história do Brasil passou a ser contada de maneira diferente há 80 anos, quando um jovem e polêmico sociólogo revolucionou a interpretação do país. Lançado em 1º de dezembro de 1933, Casa-Grande e senzala, primeiro livro do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), quebrou barreiras ao aliar ciência e literatura, inovar no enfoque de infindáveis assuntos e na multiplicidade de fontes de informação sobre a realidade material e imaterial brasileira. Deste domingo a quinta-feira, o Viver publica série de reportagens sobre um dos mais relevantes estudos sociais já escritos.
Ainda hoje, lembra a antropóloga e presidente da Academia Pernambucana de Letras, o brasileiro muda a ordem pronominal imperativa em decorrência da súplica da negra (“me dê isso”, no lugar de “dê-me”, me “faça isso”, no lugar de “faça-me”). “O falar no Brasil tem forte influência da doçura africana”, diz.
ENCONTRO DE RAÇAS
Casa-Grande & senzala, na avaliação de Tiago de Melo, segue sendo o livro mais influente já escrito no Brasil. Construiu a imagem de que nossa cultura é fruto do encontro das culturas europeia, africana e indígena. “Freyre viu nossa particularidade exatamente nesse encontro”. A afirmação é ratificada pelo filósofo e doutor em teologia Inácio Strieder: “Freyre valoriza em Casa-Grande a miscigenação e a pluralidade racial. Esta tese ele defende não a partir de mitologias, mas a partir da realidade social e antropológica do povo”.
Com as suas teorias, diz Strieder, Freyre mostra visão otimista da miscigenação. “Os miscigenados não são inferiores, mas uma raça que possui os valores de várias outras. Os indígenas e os negros, por exemplo, nos legaram seu sistema de vida, sua linguagem, sua visão de mundo”.
“Da plasticidade do português, da sistemática cotidianidade da índia, da magia doméstica da negra”, diz Fátima Quintas, “o Brasil se enredou numa miscigenação saudável, que não se revela apenas étnica, mas transcende a barreira do racial para alargar-se em um caudal de variáveis indígenas, lusitanas, africanas”.
Gilberto Freyre, argumenta Inácio Strieder, foi o primeiro escritor a trazer autoestima ao povo brasileiro. “No Brasil não predomina uma raça inferior. Pelo contrário, somos um povo riquíssimo em potencialidades humanitárias e culturais. Ter sangue indígena, africano e europeu é motivo de orgulho”.
“No início dos anos 1930, o ambiente intelectual brasileiro não tinha em seu horizonte de preocupações o nazismo ou a eugenia. Pelo menos nada que justificasse uma obra de fôlego”, explica. Por outro lado, ele acredita ser legítimo dizer que a obra de Freyre dialoga com alguns dos pressupostos que estão na origem da eugenia, na época tidos como científicos.
“Eram concepções racistas que, desde meados do século 19, haviam penetrado de maneira muito forte nos meios científicos e intelectuais brasileiros e, por espantoso que nos possa parecer, no início dos anos 1930 persistiam como traço relevante nas ‘explicações’ sobre o Brasil, sobretudo nas explicações acerca do ‘atraso’ brasileiro”.
Para o filósofo e doutor em teologia Inácio Strieder, várias ideologias defendiam um embranquecimento do povo brasileiro. “Nessa década de 1930, os diplomatas brasileiros, pode-se dizer em sua totalidade, eram brancos, e seguiam a orientação do governo de mostrar ao mundo que o Brasil era um país de brancos“. Casa-Grande e senzala surge na contramão desse pensamento, e mostra que a população era, em sua maioria, pluriracial, “fruto da miscigenação entre três vertentes sanguíneas: a branca, a negra e a indígena”.
“Frente a este futuro [mestiço] da humanidade, já real no Brasil”, destaca Inácio Strieder, “a política deveria promover a igualdade e se orientar por princípios que garantissem uma democracia racial”. Gilberto Freyre se propõe a fazer uma crítica radical aos “pressupostos racistas por fundamento” que eram direcionados ao Brasil.
“Daí sua incisiva insistência de que a questão a ser considerada era de natureza social e cultural. Não havia atraso, havia uma especificidade de formação histórica a ser conhecida e destacada”, comenta Flávio Weinstein. Uma das muitas ousadias de Casa-Grande, ele acrescenta, está em chamar atenção para a centralidade do negro na formação da sociedade brasileira.
36% é a diferença percentual entre a média salarial entre o trabalhador branco e não-branco (2013, Dieese)
59,9% da população carcerária brasileira é negra ou parda (2010, IBGE)
2,4 negros ou pardos são vítimas de homicídio no Brasil, em média, para cada não negro assassinado (2013, Ipea)
6,8 negros ou pardos são vítimas de homicídio em Pernambuco, em média, para cada não negro assassinado (2013, Ipea)
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