Cresce o número de mulheres no Brasil que opta pela maternidade sem cônjuges

aA professora universitária Ana Cláudia Farranha, 43 anos, desdobra-se em duas, três, quatro versões de si para criar e educar Maria Carolina, 7 anos. Pela manhã, bem cedo, desperta a filha para o café da manhã e a deixa no colégio. Pega a estrada e dirige 40 quilômetros, todos os dias, para dar aulas de manhã, à tarde e, muitas vezes, à noite, no câmpus da Universidade de Brasília (UnB) em Planaltina. Mesmo assim, é ela quem busca a filha nas aulas de inglês e na natação. Pausa para o jantar e novo fôlego: lado a lado, farão, cada uma, os “deveres de casa”. Apesar desse exaustivo corre-corre, Ana Cláudia não reclama. Teve plena consciência de que, ao adotar Maria Carolina, quando a menina tinha apenas um ano, seria mãe solteira e teria o dobro de tarefas que famílias formadas por casais. O importante era realizar um sonho: ser mãe. O caso de Ana Cláudia ilustra uma nova configuração familiar que vem despertando mudanças na sociedade.

Dados do último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2010, indicam uma elevada porcentagem de famílias formadas por mulheres sem cônjuge e com filhos. No Distrito Federal, esse número chama ainda mais a atenção: 56,7% (três pontos percentuais acima da média nacional). A sondagem aborda os núcleos monoparentais indistintamente. Entram na conta, por exemplo, as viúvas e as divorciadas.

“Mais de um terço das famílias brasileiras é monoparental. Quase a totalidade delas sob a responsabilidade de mulheres, situando-se entre os domicílios de mais baixa renda do país. As mães hoje são provedoras, cuidadoras, chefes de família, trabalhadoras em um mercado que ainda lhes paga salários inferiores aos dos homens, agravando a situação de grupo significativo de mulheres, que, inclusive, não tinha a expectativa de criar filhos sozinhas”, analisa a socióloga Ana Liési.

Se por um lado existe a condição de mãe solteira imposta, por outro, desponta um perfil radicalmente diferente: o das mulheres que optaram pela maternidade sem cônjuges. Para a antropóloga Mirian Goldenberg, estaríamos experimentando uma nova definição de família: “Mais flexível, mais democrática e mais plural”. São mães solteiras que, ao deixar de lado modelos rígidos, fizeram uma escolha deliberada por novos contextos. Quem observa esse fenômeno é a professora de sociologia Lourdes Maria Bandeira, da Universidade de Brasília (UnB). “Essa nova constituição familiar teve maior visibilidade a partir do século 21, porque a ideia de conjugalidade para se ter um filho deixou de ser condição”, adianta. Aliada a essa mudança, outros dois fatores, segundo a professora, respondem pelo perfil de uma nova mãe solteira, não mais restrita à ideia de “mulher abandonada com os filhos”.

“A família não precisa mais ser a tradicional pai + mãe + filho. Ela pode ser pai + filho, pai + pai + filho, entre outros moldes. Outro fator: temos uma dedicação maior de tempo à qualificação profissional e isso acaba adiando uma proposta de um relacionamento com vistas à família com filhos. O que faz com que essas mulheres tenham a livre opção por ter uma produção independente ou por adotar uma criança, independentemente de terem ou não um parceiro. A decisão passa a ser puramente delas”, constata a socióloga.

Ana Cláudia Farranha faz parte desse grupo, cuja especificidade ainda não foi desvendada pelas pesquisas quantitativas. Mas a professora arrisca um diagnóstico: estamos diante de uma nova geração de mães solteiras disposta a recorrer à adoção ou à reprodução assistida. “Nossa escolha por ser mãe solteira não foi imposta. Nem esperamos que um dia surja um pai para a criança”, explica.

Terminado um casamento de 10 anos com um homem que não queria ter filhos, Ana Cláudia maturou a decisão de embarcar na maternidade. Há seis anos, adotou Maria Carolina — uma menina de cabelos encaracolados como os da mãe. A garota, hoje com 7 anos, pergunta-lhe sobre sua origem. Ana Cláudia optou por contar a verdade. “Falo da adoção desde o dia em que ela me perguntou”, conta.

Na escola, Maria Carolina e outros coleguinhas que experimentam um núcleo familiar diferente do “pai, mãe e filhos” veem com mais naturalidade famílias com duas mães, pais separados, um avô/pai ou uma mãe solteira. Tanto que, na escola, em vez de Dia das Mães e dos Pais, adotou-se o Dia da Família. “Dessa forma, criam-se novos laços sociais importantes e conquistamos novos direitos. Hoje, por exemplo, não é mais o registro do nome do pai e da mãe que consta na certidão de nascimento e no RG, mas o de filiação. No caso de famílias monoparentais, a filiação é de um pai ou de uma mãe. Minha filha tem na filiação o meu nome. Ou seja, no papel, não há mais a figura do ‘pai desconhecido’”, celebra Ana Cláudia.

O novo modelo de preenchimento da certidão de nascimento e do registro civil foi instituído pelo Conselho Nacional de Justiça em 2009. Para a advogada Fabiana Gadelha, trata-se de um grande avanço não só para as novas constituições familiares. “A partir do momento em que falo de filiação, e não mais de pai ou mãe, amplio a questão da diversidade familiar da qual todos fazemos parte nas últimas décadas.”

Quem são e como pensam as mulheres que optaram por chefiar a casa sem um companheiro?

Francisca Rios, 51 anos, enfrentou muito atrito com a sociedade. Na época em que engravidou de Mariana, a empresária, que na época tinha 23 anos, não teve apoio do então namorado, que jamais reconheceu a filha. Os pais a acolheram, mas tentaram a todo custo preservar a filha do olhar preconceituoso da vizinhança. Francisca recorda que, a duras penas, conseguiu terminar a faculdade e crescer profissionalmente sendo mãe solteira. Quando tentou batizar a filha em uma igreja frequentada pela família, sofreu mais uma vez.

“Na época, década de 1980, o padre disse que não batizaria de forma alguma uma criança filha de mãe solteira. Tive um ato de rebeldia, cuspi na cara dele e fui para outra igreja onde consegui batizar a Mariana”, conta. Passado pouco tempo, Francisca voltou a namorar a se casou com aquele que seria o pai da segunda filha, Daniela. Foi ele quem assumiu a paternidade da primogênita. Porém, com o fim do relacionamento, ele se tornou ausente.

“Novamente, senti o preconceito por estar na condição de mãe solteira. Tínhamos casais de amigos e fui excluída. Ninguém queria ser amiga de uma mulher solteira, de 30 e poucos anos, com duas filhas. Eu era uma espécie de ameaça para as mulheres casadas, como se fosse um alvo para esses maridos. Fiquei sozinha em relação às amizades da época”, lembra.

Era Francisca quem pagava a escola das filhas, com a ajuda financeira de um irmão. Trabalhava em três turnos e ainda fazia uma pós-graduação para oferecer uma melhor qualidade de vida às filhas. “Quando o meu ex saiu de casa, estava por um fio: fiquei completamente endividada. Não tinha dinheiro para comprar o leite do dia seguinte. Com muita força e perseverança, eduquei as meninas. Lutei por tudo que temos hoje.” Consciente de que venceu muitos obstáculos, Francisca sabe que, hoje, mães sem cônjuge têm outra perspectiva. “As mulheres, inclusive, planejam — querem ser mãe, escolhem ter ou não um parceiro. Essa questão é mais bem tratada hoje do que na minha época. Apesar de os meus pais terem me apoiado, especialmente meu pai, porque minha mãe me falava: ‘Minha filha, não desce muito do apartamento não’, ‘Não se exponha tanto, não’. Porque ela queria me proteger do olhar dela e da geração dela. Foi difícil”, resume.

Ao serem questionadas sobre a história da mãe, Mariana, 27 anos, bancária, e Daniela, 23, estudante de psicologia, orgulham-se. Ambas não guardam mágoa do pai, que as visita esporadicamente. Mas sabem que, mesmo no Dia dos Pais, a mãe merece presente e reconhecimento. “E, se não damos, ela fica brava”, brinca Daniela, que, na formatura de ensino médio, dançou a valsa com Francisca. É com ela que, um dia, a jovem pretende entrar na igreja, quando se casar.

Descobrindo as diferenças
Um dos momentos mais importantes vivenciado por mães que optaram por produções independentes é escolher a hora e o que falar para o filho sobre o pai. “Em primeiro lugar, não mentir. Agora, quanto a hora certa de contar, isso vai depender dos questionamentos da criança e do nível de compreensão dela. Por isso, voltamos à importância de um preparo anterior. Porque, se essa escolha for tranquila para a mãe desde o primeiro momento, automaticamente ela vai interferir no modo como a mãe vai explicá-la ao filho”, reforça a psicóloga Helena Montagnini.

Lançado este ano, Descobrindo as diferenças — a família de leãozinho é assim (Ensinamento Editora) conta uma história diferente daquelas encontradas em livros infantis. Escrito pela jornalista e pesquisadora Laísa Freire em resposta às indagações do afilhado, fruto de uma produção independente por meio de reprodução assistida, o enredo descreve o cotidiano de um filhote de leão às voltas com a pergunta: “Quem é meu pai?”. No livro, a mãe — uma pata — responde que um homem generoso doou uma semente para que ela pudesse realizar o sonho de ter um leãozinho. Fora das páginas, no entanto, Talita (nome fictício), 40 anos, amiga de infância da autora, se junta a outras mães que ainda não sabem como ou quando contar aos filhos que eles fazem parte de uma configuração familiar que ainda gera questionamentos.

Motivada por essa dificuldade de Talita, a escritora pensou em personagens e situações que pudessem mostrar ao afilhado, hoje com 3 anos, que entre tantos contextos familiares, o dele não estava excluído. “Se a criança já cresce sabendo a realidade sobre sua origem, e esta é apresentada a ela sem mentiras, ela compreenderá com maior facilidade a própria história. Por isso, esse livro é para todas as crianças, uma vez que cada família é diferente uma da outra: algumas vivem com o pai e a mãe, outras só com a mãe, outras com dois pais, e por aí vai”, descreve a escritora.

Por enquanto, Talita, a mãe do “leãozinho” não faz ideia de como o filho reagirá quando souber sobre sua origem. No entanto, resguardado pelo anonimato determinado por normas éticas do Conselho Federal de Medicina, os doadores só serão identificados mediante um processo judicial, que pode se estender por anos. Para o médico Maurício Chehin, não é preciso criar um bicho de sete cabeças sobre o assunto — quando essas crianças chegarem à adolescência, a sociedade estará mais aberta, mais apta a aceitar configurações familiares alternativas.

“Infelizmente, não temos dados sobre como os adultos, filhos de reprodução assistida das primeiras mães solteiras que procuraram a clínica há duas décadas, se comportaram e se comportam hoje porque não recebemos esse feedback das mães ou deles. Porém, com certeza, as gerações futuras vão ser muito diferentes das atuais. Vai ser muito mais comum encontrar na escola uma criança gerada nesses termos”, aposta Chehin. Roberta (nome fictício), que, assim como Talita, optou pela reprodução assistida, concorda e aposta nesse cenário. “A gente pensa com a cabeça da nossa geração, mas minha filha já tem contato com outros modelos familiares. Quanto a mim, só posso dizer que, hoje, por ter realizado o sonho de ser mãe, sou uma mulher mais feliz.”

Fonte: Correio Braziliense

Blog do Deputado Federal GONZAGA PATRIOTA (PSB/PE)

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