Michelangelo descarregou frustração com a Cúria na Capela Sistina

“E o pincel sobre o meu rosto goteja / O transforma em piso suntuoso / As costas entraram em minha pança / Enquanto o traseiro é contraído como as ancas de um cavalo”

Os versos acima são de Michelangelo Buonarroti, artista toscano que pintou, a contragosto, duas das maiores obras de arte da Humanidade – o teto da Capela Sistina e o afresco do “Juízo Final”, na parede do altar do santuário. São elas que 115 cardeais contemplarão a partir de hoje, na 25ª eleição papal seguida sediada naquele espaço. A primeira desta série foi em 1878, quando Leão XIII foi eleito.

Embora as demais paredes sejam projetos de outros renascentistas, Michelangelo tornou-se o único nome indissociável à capela. Dedicou a seu teto quatro anos e meio, trabalhando contorcido sobre um andaime. Terminou a obra com a cabeça inclinada para trás, a visão comprometida e o corpo inchado com a retenção de líquidos.

Além de Papas de egos imensuráveis a quem teve de responder, Michelangelo precisou driblar censores, como o arquiteto da nova Basílica de São Pedro, Donato Bramante – durante a pintura do teto -, e o chefe de gabinete do Papa Paulo III, Biagio da Cesena – 22 anos depois, quando foi convocado para retratar o “Juízo Final”.

Mesmo vigiado constantemente, o toscano deu um jeito de se vingar de seus vigilantes. Júlio II, que encomendou o teto da capela, considerou-a uma “obra muito pobre”, sentindo falta das cores azul e dourado do brasão de sua dinastia. Michelangelo retrucou: “Os santos que estão lá em cima também eram pobres”. A Biagio da Cesena, o castigo foi mais cruel. Michelangelo pintou-o no inferno do “Juízo Final”, com uma serpente enroscada no corpo e mastigando seus testículos.

Paredes escondem rivalidade entre Florença e Roma

A Capela Sistina teve uma antecessora. Chamava-se Palatina e estava em um local com risco de desabamento. Veio de Sisto IV a iniciativa de revitalizá-la – e rebatizá-la – em 1475.

As paredes da capela são uma resposta à rixa entre Roma e Florença. Em 1478, Sisto IV mandou assassinos matarem o mecenas Lorenzo Médici em plena catedral florentina. Deveriam atacá-lo assim que o padre erguesse a hóstia. Médici escapou e, depois, em um suposto sinal de paz, ofereceu seus maiores talentos para decorarem a Sistina.

Sandro Botticelli, Cosimo Rosselli e Domenico Ghirlandaio estavam entre os responsáveis por retratarem duas séries de painéis. A parede sul ficaria com a história de Moisés; a norte, com a vida de Jesus. O azul e dourado, tão caros à família de Sisto IV – um ascendente de Júlio II -, foram usados para colorir arruaceiros pagãos expulsos por Moisés, um navio que afoga e um carvalho bem ao lado de Satanás, quando este é desmascarado. O Pontífice não percebeu a zombaria.

Júlio II resolveu usar a Sistina para contar a Bíblia 25 anos depois da construção da capela. Inicialmente, o “Papa Terrível”, como ficou conhecido, contratou Michelangelo para esculpir um monumento em sua homenagem, que seria posto onde hoje é o altar da Basílica de São Pedro. Como a estátua não caberia ali, mandou demolir o templo para que outro fosse construído.

Depois, porém, o Pontífice resolveu priorizar o teto da Capela Sistina, vizinha à basílica, o que deixou Michelangelo contrariado. Ele nunca havia feito um afresco — e este, com seus 1.100 metros quadrados, seria o maior do mundo. A disposição dos censores em denunciar heresias também era um desafio.

– Mas Michelangelo não resistiu à tentação de expressar suas ideias e, também, o desprezo que tinha por Roma – conta Roy Doliner, pesquisador de Religião e História da Arte e autor de “Os segredos da Capela Sistina”.

– O dourado e o vermelho, as cores de Roma, são usados de formas inimagináveis, mas sempre insultantes.

Da separação da luz e das trevas até a embriaguez de Noé, passando pela criação de Deus – provavelmente o painel mais conhecido -, Michelangelo introduziu diversas mensagens ocultas. Na “Criação do Sol e da Lua”, fez Deus de costas, com as nádegas à mostra. Sobre a entrada do Papa, trocou o Jesus pedido pelo Papa pelo profeta Zacarias, que denunciara a corrupção. E sobre o trono papal foi pintado Aminadab, um judeu, povo tido como inferior. Em 1215, o Concílio de Latrão obrigara os judeus a usar um distintivo especial amarelo, cor escolhida por lembrar a urina.

O teto e o “Juízo Final” têm em comum o reconhecimento instantâneo e a raiva que sentira Michelangelo – tanto pelos Papas, que o mantiveram longe da Toscana, quanto pela obrigação de se dedicar aos afrescos, e não às suas amadas esculturas.

Michelangelo, aos 86 anos, foi intimado a voltar ao teto da Sistina e cobrir as heresias que pintou na capela papal. Dois anos depois, com a morte do artista, um de seus discípulos cumpriu a função, sob a ameaça de que, se não o fizesse, o edifício seria demolido. Mas a Sistina, mesmo adulterada, permaneceu admirada – mesmo por Papas e cardeais.

Fonte: O Globo

Blog do Deputado Federal GONZAGA PATRIOTA (PSB/PE)

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